Culto aos Mortos nos Cemitérios

A proposta para este artigo é realizar um breve estudo acerca da “cultura da morte” por meio de uma microanálise,ou seja, pretende-se verificar a simbologia no cemitério – tida como sagrada – e as práticas sociais em torno do túmulo: a colocação de flores, velas, cruzes, imagens de santos, etc., que podem nos ajudar a entender a cultura da morte na nossa atualidade e suas mudanças, as permanências, a relação com outras culturas, a relação entre o sagrado e o secular, etc. Para todo caso, esta breve abordagem aqui trazida constitui mais uma indicação de caminho a ser percorrido do que uma análise propriamente dita.

Sendo assim, uma investigação do culto católico da morte e do túmulo enquanto “templo sagrado”, através de um enfoque e da micro história, cremos ser viável.

O CULTO À MORTE NOS CEMITÉRIOS

Veremos então, alguns dos elementos simbólicos presentes nos cemitérios e que são geralmente cultuados pela população. No entanto, procuramos, além de identificá-los, fornecer algumas informações que ajudam a compreender as apropriações e representações sociais que revestem esses símbolos, que assumem significados fúnebres no espaço cemiterial e dinamizam as relações sociais entre vivos e mortos dentro de seus muros.

1. Cruzes

Nos cemitérios, a cruz é a simbologia mais recorrente. Elas se espalham pelo cemitério em vários tamanhos e em vários formatos. A cruz é um dos símbolos – pra não dizer o mais – importante do cristianismo. Ela representa a morte de Cristo, ou seja, símbolo sagrado para os cristãos. Assim, a cruz está nas igrejas, nos cemitérios, nas capelas, nas procissões e nos demais lugares religiosos, inclusive nos terreiros de quimbanda, onde faz referência as almas. Nos cemitérios encontramos uma variedade de cruzes de todas as formas e tamanhos. Cada uma delas, de acordo com seu formato, possui uma representatividade particular nas crenças religiosas daqueles que a cultuam.

2. Velas

Os primeiros a fazerem uso das velas foram os egípcios, por volta de 3000 a.C., mas estas eram muito diferentes das que usamos atualmente, e serviam principalmente para iluminar ambientes. Por volta do ano 320 d.C., as velas foram introduzidas no catolicismo, passando a fazer parte das liturgias. Nos cultos, a luz da vela representa a luz divina que ilumina a morada eterna, opondo-se à escuridão das trevas. A luz da vela representa o Cristo, que consumiu sua vida até o fim e, à semelhança Dele, as pessoas também devem consumir suas vidas para iluminar o mundo. Quando acesas para os mortos, as velas representam a luz que deve guiar a alma do falecido à “morada eterna”. Por mais “santo” que tenha sido o moribundo em vida, nunca é demais acender velas para a elevação de sua alma. Na prática, não há excesso de luz quando o objetivo é alcançar a “morada eterna”.

Ao observar as pessoas nos cemitérios, percebemos que a prática de acender velas, em alguns casos, assume outra conotação além da função de guiar a alma do falecido. Assume a função de demonstrar ao público cemiterial o quanto a pessoa que morreu era querida, dedicando à ela uma vela. Nota-se que, na prática de acender velas para os mortos, a questão da identidade também entra em jogo.

Igualmente percebemos que, muitos, enquanto acendem velas nos túmulos, vão orando aos santos pela alma do falecido. Nesse sentido, cada vela acesa constitui uma reza proferida, seja um “Pai Nosso”, um “Credo”. Outras pessoas costumam ainda acender um maço, que se constitui de velas, para cada corpo depositado no jazigo.

3. Flores

As flores também estão muito presentes no cemitério. Vemos sua presença praticamente em todos os túmulos. Embora os crisântemos e margaridas sejam as mais utilizadas nos dias de finados, as rosas são as que têm maior significado para as pessoas. Estas são plantadas sobre a sepultura, podendo ser róseas, vermelhas ou brancas. As vermelhas, por exemplo, podem representar o sangue de Cristo. “Assim, de uma forma geral, a rosa está intimamente ligada à idéia do amor divino. Exatamente por isso, ela pode ser considerada hoje como um dos símbolos do amor”. As flores em geral expressam a forma de afetividade perante o falecido.

Comum também são as coroas de flores, colocadas sobre o centro do túmulo ou penduradas nas cruzes. As coroas de flores, para os cristãos, representam a salvação; a vitória da luz sobre a escuridão, da alma sobre o pecado. “A coroa de flores também pode ser o símbolo da saudade, e por isso é utilizada constantemente nos funerais”. Para os maçons a coroa de flores significa a existência cíclica, é chamada de “oroboro”, palavra que lida de trás para frente tem a mesma escrita, e que significa “meu fim, é o meu começo!”.

4. Ícones

O elemento “fé” também se faz presente em grande parte dos túmulos, por meio de inscrições, imagens, símbolos, e demais ícones que representam Fé. Isso se verifica na sua grande quantidade presente nos túmulos. São imagens de Anjos, de Jesus Cristo, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Conceição, Nossa senhora da Luz, São Pedro, Santo Antônio, entre outros santos que a população venera.

Além das imagens angelicais e de santos, também encontram-se crucifixos, candelabros, escapulários e terços. Todos esses ícones, os quais os católicos têm como sagrados, são postos nos túmulos no intuito de facilitar a passagem da alma do morto para a “vida eterna”.

5. Fotografias

Após a morte do ente, o vazio deixado na vida dos familiares é tamanho, que, muitas vezes, é necessário que seus pertences sejam guardados como recordação, permitindo que o falecido seja lembrado. Da mesma forma são as fotografias, que colocadas sobre os túmulos, além de identificarem o morto, impedem que as pessoas se esqueçam de sua fisionomia. A representação imagética assume o papel de instrumento de apoio para o bom trabalho de luto, preenchendo um vazio deixado a partir do desaparecimento do corpo, e, ainda, apresenta-se como uma forma de lutar contra a ameaça que cerca a todos os indivíduos, que é a assustadora ameaça do esquecimento.

A origem dos retratos representando a pessoa que morreu surgiu no período paleolítico. Pesquisas arqueológicas realizadas em diversas partes do mundo, identificaram iconografias e crânios estilizados que representavam os mortos.Durante a Idade Média, os retratos mortuários não buscavam retratar fielmente o rosto do falecido. A tendência em retratar o rosto do morto exatamente como ele era em vida só apareceu no final do período medieval, quando os rituais macabros destinados aos mortos, característicos da Idade Moderna, passaram também a surgir.

Durante o trajeto histórico dos retratos mortuários, os finados eram representados principalmente pelas máscaras mortuárias. Isso começou a mudar a partir do século XIX, quando a pintura e a fotografia ganharam espaço ao retratar os falecidos – e, historicamente, podemos notar que tanto essa quanto àquela eram utilizadas principalmente para preservar a memória dos seus “grandes personagens”. No intuito de registrar a imagem do morto. A grande semelhança da representação da pessoa fotografada foi decisiva para a enorme aceitação dos retratos fotográficos. A fidelidade captada pela fotografia com o falecido em vida fez com que essas fossem postas nos túmulos. Até hoje, foi a melhor maneira encontrada de perpetuar feições e identificar mais precisamente o morto. Essas fotografias se espalham por todo o cemitério, mas não tanto quanto as cruzes e os epitáfios.

6. Epitáfios

Epitáfios são inscrições postas nos túmulos para, geralmente, homenagear os mortos. Essas inscrições são esculpidas em placas metálicas, cerâmicas, mármore ou em madeira. Elas podem contar resumidamente a biografia do morto, expressar sentimento de tristeza, saudade, revolta, inconformismo, gratidão, esperança, entre outros sentimentos, que mobilizam os parentes dos que se foram. Muitos desses epitáfios, expõem trechos bíblicos, como, por exemplo, os Salmos. Esses trechos bíblicos geralmente são frases de conforto, como uma estratégia das famílias dos falecidos de “autoconsolação”.

Praticamente todos os túmulos possuem seu epitáfio, isso porque ele assumiu, em nossa contemporaneidade, principalmente um caráter biográfico, ou seja, sinalizando o nome do falecido, a data de nascimento – simbolizado por uma estrelinha (*) – e a data de falecimento – simbolizado por uma cruz (†), registrando assim o início e o fim da existência humana do indivíduo na terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que convém destacar, é que o cemitério é esse compêndio de informações que nos favorece entender melhor sobre a relação do homem com a morte ao longo da história, indicando um caminho inicial aos que almejam um conhecimento mais estrito sobre esse fenômeno. A proposta deste artigo não foi fazer um enquadramento como fruto de uma análise meramente simbólica, mas mostrar que o cemitério inspira vários estudos que podem nos ajudar a compreender a relação do ser humano com a morte, que sem dúvida, é uma das necessidades mais fundamentais da nossa existência nesse plano. Afinal, esse fenômeno, intrínseco à própria existência humana, está no cerne mesmo das muitas ideias, concepções e experiências religiosas observadas ao longo da história. E mais precisamente nos diz que uma das maiores aspirações do homem, desde as suas origens, foi, exatamente, a de tentar dominar a morte. Cabe salientar que é impraticável à humanidade tratar da morte sem se referenciar, à vida, ou vice-versa – uma dialética, perdurável, revestida de um “querer viver” versus o “ter que morrer”.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Referências:

ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000.

BELLOMO, Harry Rodrigues. As origens da arte funerária. In: BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 39-60.

DALMÁZ, Mateus. Símbolos e seus significados na arte funerária do Rio Grande do Sul. In: BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 97-112.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O rosto e a terra. Onde começa o retrato, onde se ausenta o rosto. Revista Porto Alegre, v. 9, n. 16, p.1-128, maio, 1998.

SOARES, Miguel Augusto Pinto. Representações da morte: fotografia e memória. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUC-RGS, 2007.